A arte e a era Google: Esculturas imateriais e trabalhos ausentes
Em plena pandemia de Covid-19, mais precisamente em 18 de maio de 2021, uma escultura chamou a atenção da mídia internacional: Io sono (Eu sou) de Salvatore Grau. O trabalho foi arrebatado em um leilão, na cidade de Milão, pelo valor de 15 mil euros.
A comoção foi gerada por um único fator: o trabalho só existe na cabeça do artista. Não há projeto, documentação ou qualquer tipo presença visual. Exibir o trabalho significa simplesmente demarcar o espaço estipulado por Grau no chão e dar-lhe o título. Por exigência do próprio artista, nem o certificado de propriedade da obra é passível de exibição. Apesar de em um primeiro momento parecer que se trata de expor a “nadisse” do nada, Grau explica que na verdade seu trabalho é sobre o poder da imaginação. O artista acredita que a partir do momento em que há a demarcação do espaço com o intuito de ser escultura, e se atribui um título àquilo, passa a existir uma condensação de pensamentos que ganha uma forma única em cada indivíduo e que diferenciá-lo-á qualitativamente da experiência imaginativa com o restante da realidade sensível.
A obra suscita uma série de questionamentos a respeito do panorama geral atual da produção de arte contemporânea, além de propor desafios para uma articulação crítica dos pressupostos que fazem com que Io Sono. Nesse breve ensaio, tomo a liberdade de problematizar três aspectos que considero interessantes a partir dessa obra. O primeiro deles é o “vir a ser” da arte contemporânea, o segundo as mudanças sociais que as novas tecnologias, sobretudo a plataforma Google, operaram na sociedade civil; e, em terceiro a questão do mercado de arte à partir da precificação de obras de arte.
“Vir a ser” da arte contemporânea significa dizer que os trabalhos artísticos obedecem uma certa ordem causal que faz com que esses sejam ausentes e presentes ao mesmo tempo. Isso porque, as exposições contemporâneas de arte funcionam a
partir de projetos autorais dos curadores, fazendo com que as obras que participam dessas tornem-se documentações de si próprias servindo a narrativa de outrem. (Groys, 2008).
Já as mudanças que a plataforma Google trouxe a sociedade civil dizem respeito a formatação dessa ferramenta como uma máquina filosófica metafisica que alterou significativamente a forma com a qual os seres humanos se relacionam com o mundo. (Groys, 2011).
Mas, apesar dos pontos anteriores, o que pareceu causar mais incomodo ao grande público foi a quantia pela qual a escultura acabou por ser vendida. Apesar da intenção do artista não ser a de criticar o mercado, ela parece acabar por faze-lo aos olhos do grande publico que simplesmente não vê como “aquela mercadoria” poderia ser vendida por tal quantia.
O que significa para um trabalho ser ausente do tempo presente?
As características intrínsecas ao objeto artístico variaram ao longo da linha narrativa da história da arte. A diversidade de unidades nesse conjunto chamado Arte é tamanha que um dos grandes trabalhos para a filosofia da arte é o de definir o próprio conceito de arte. Desde o aparecimento moderno, sendo o Louvre o exemplo clássico no tema, o objeto artístico passou a ter como uma de suas características constituintes à de ser aquele que era protegido da passagem do tempo. A função do museu, e de seu curador, era a de resguardar por aquele objeto que recebeu sua promoção ontológica à eternidade. O objeto artístico institucionalizado teria assim sua durabilidade material assegurada contra os desgastes materiais que poderia vir a sofrer na realidade sensível do mundo. Mas essa prometida imortalidade para a obra de arte não sobreviveu a chegada do século XX.
O museu é fruto da sociedade moderna. É constituído sobre as mesmas premissas filosóficas que alimentavam o pensamento da época: humanismo, hegelianismo, e a transcendência kantiana. O museu assim como a ciência moderna tende ao universal,
ao abrangente, ao desenvolvimento do Espírito. O curador desse museu era aquele dotado da “mágica” de tornar objetos cotidianos em obras de arte. Através de um gesto iconoclasta, um cálice, um crucifixo, um sarcófago deixavam de ser objetos de culto para tornarem-se obras de arte. (Groys, 2008). Perderam sua utilidade, mas ganharam a promessa da eternidade. Mas a sociedade quebra sua parte do acordo, o século XX assiste uma sucessão de guerras que devastaram o continente europeu. O museu do Prado em Madri por exemplo, viu-se obrigado a refugiar sua coleção em cavernas afim de proteger seus “góias” de possíveis saques e vandalizações que poderiam acontecer na Guerra Civil Espanhola. Algum tempo depois, na Holanda ocupada pelos nazistas, o museu Stedelik em Amsterdã construiu bunkers para proteger não só o seu próprio acervo como também a famosa Ronda Noturna de Rembrandt. O medo holandês foi totalmente justificado, os nazistas foram responsáveis pelo saque e destruição de uma infinidade de obras por onde passaram. Sua atitude mais famosa, foi talvez a organização da exposição de Arte Degenerada. Organizada sobre uma premissa higienistas, o regime totalitário pretendia demonstrar quais valores visíveis na arte moderna de vanguarda eram responsáveis pelo “declínio” da sociedade alemã.
Seja ou não alimentada pelo clima de instabilidade política, a arte aos poucos vai se tornando cada vez mais efêmera. Aos poucos a velha hierarquização dos meios artísticos e das temáticas cai. A pintura eterna dá espaço e convive com as performances dadaístas. O tempo presente passa a ser reafirmado, seja através do ânimo com o novo, seja com o fascínio pelo industrial, seja com as novas descobertas que levaram à psicologia. É o tempo vangloriado por uma população que havia recebido a Primeira Guerra Mundial com euforia, e agora, via lentamente a recessão, as ruínas e a chegada de uma segunda. (Segal, 2016).
Após a Segunda Guerra Mundial a polarização política do mundo torna-se a regra do jogo. De uma lado a União Soviética totalitária e do outro os Estados Unidos da América capitalista, que agora sem um inimigo em comum repartem o mundo. Hoje vivemos um tempo de revisionismo histórico, por muito tempo a arte produzida nos países do bloco comunista foi desconsiderada pela história da arte por não atender aos ideais daquilo que chamamos: modernismo. Autores como Boris Groys e Igor Golomstock defendem que apesar de terem comportamentos distintos, ambos os polos tinham produções modernas. A arte produzida dentro de um sistema totalitário na modernidade assume a característica de propaganda política, enquanto que a arte produzida em uma país do “mundo livre” assume a característica de commodity. (Groys, 2008). Ambas modernas, mas com uma diferença essencial no sistema de regimento das imagens. A arte produzida pela URSS é regulamentada pelo governo em seu nível máximo: da compra de material por parte dos artistas ao posicionamento da obra na cidade e sua composição interna. É uma arte pensada para as massas cujo objetivo é de possibilitar ao espectador um vislumbre do mundo perfeito que será alcançado quando o regime socialista enfim estiver em seu nível máximo. Segundo Groys (2008), é o fato de arte totalitária ser produzida a partir de uma ideologia, ou seja, ser produzida a partir de um conceito que, assim como as artes, opera no campo da “visão” que lhe garante alguma efetividade política. Ainda segundo o autor, essa produção seria diametralmente oposta daquela produzida nos países capitalistas que possuem um sistema de produção e circulação baseado na “mão invisível” do mercado. Essa relação de invisibilidade versus visibilidade na arte produzida pelo regimento capitalista faria com que a obra possuísse no máximo a característica de ser um commodity auto crítico.
O muro cai, o comunismo acaba, e a bipartição política do mundo termina. A Europa Ocidental se vê na posição de tentar integrar culturalmente seus companheiros do leste enquanto esses ainda estão tentando entender como os seguros funcionam. Enquanto isso, no mundo da arte, começa a explosão de um “novo” formato: a aparição das diversas exposições bienais ao redor do globo nos anos 1990. (Green & Gardner, 2016). Até hoje o formato divide a opinião do público e dos críticos de arte. Quando a Documenta 14 vai para Atenas por exemplo, foi recebida por uma parte do público grego com hostilidade. A exposição foi vista como uma tentativa de neocolonialismo cultural alemão e apelidada de: “Crapumenta”. (Smith, 2017). No caso dos críticos, Peter Schjeldahl (2002) considera as exposições bienais como uma mistura de política soft-core e entretenimento, financiadas por patrocinadores de índole questionável. Ainda para o autor, essas exposições tem o objetivo claro de distrair as massas. Já para os apoiadores do formato, como é o caso de Groys (2008), as bienais são os únicos espaços nos quais a arte ainda pode ter alguma efetividade política. Isso porque os trabalhos apresentados nessas exposições não tem como destino um mercado consumidor de obras de arte. Essa produção tem como objetivo apenas ser vista, não o de ser vendida, na maior parte dos casos, as obras são feitas exclusivamente para aquela exposição e comissionadas pela própria organização da mesma.
Independentemente de vermos com bons ou maus olhos o formato, ele se consagrou como o display por excelência da arte contemporânea, trazendo consigo uma nova problemática para as obras e para a figura do curador. No caso das obras de arte, elas deixam de ser unas em si mesmas para tornarem se documentos delas próprias; e, no caso do curador ele volta a ter o poder de transformar objetos comuns em obras, poder que havia sido perdido no contexto das vanguardas modernas. (Groys, 2008). Desde os anos 1960, a arte documental ganha espaço sobretudo sobre o formato de registro de performances, happenings e da land art. Esses registros passam a compor o espaço expositivo majoritariamente como instalação. Em uma instalação cada objeto abdica de suas características próprias para compor a “obra”, ou seja, cada objeto torna-se documento de si próprio em prol de “um bem maior”. As bienais comportam-se como grandes instalações, ou seja, os curadores traçam um projeto, e os objetos exibidos ali estão a serviço daquela narrativa. Obras de arte convivem com objetos comuns no espaço expositivo sem que aquela velha diferença ontológica criada pelos museus exista, com as bienais a arte contemporânea conquista a equidade das imagens.
E é à isso que me refiro quando digo que de alguma forma todo o trabalho tem em si a capacidade de ser ausente: todo o trabalho em uma bienal está ausente e presente ao mesmo tempo, adota uma atitude paradoxal com relação ao tempo e ao seu próprio capital simbólico. Para além disso, com a chegada do artivismo ao espaço expositivo, o trabalho ganha uma nova dimensão de ausência. Vou tomar como exemplo a obra Become a scape agente! Do coletivo Peng! exibida por ocasião da 12a edição da Manifesta. O trabalho consiste em um vídeo com uma linguagem muito próxima a da propaganda. Nele, alemães de férias em outros países da União Europeia são incentivados à levar consigo, na volta para casa, um refugiado. Isso porque, de acordo com as leis da União, os refugiados tem sua circulação restringida, e não podem deixar o país no qual chegaram. Levar um refugiado significa cometer o crime de tráfico humano, então no final do vídeo, o coletivo explica como proceder caso seja apanhado e oferece o serviço legal caso seja necessário.
O vídeo do coletivo Peng! não tem a pretensão de ser uma obra em si, também não registra algo que já aconteceu. Ele se dirige ao futuro, à uma possível que ação que poderá ou não ocorrer. Se entendermos que a obra tem sua totalidade alcançada
apenas quando alguém cumpre a proposta do vídeo, a obra não existe ali no espaço expositivo, o que existe é o espaço conceitual de convergência para que se possa imaginar sua existência, não sendo assim tão diferente da obra de Grau
O que significa para um trabalho ter uma relação com uma sociedade da era Google?
A consolidação do Google como uma das principais ferramentas de relação do homem com o mundo trouxe mudanças significativas na forma como a qual a filosofia, a linguagem e a própria experiência humana acontecem. Boris Groys (2011), descreve a experiência humana como um prolongado diálogo com o mundo. Cada um de nós interroga o mundo ao mesmo tempo em que é interrogado por ele. Esse diálogo entretanto não acontece da mesma forma para todos os indivíduos, pois cada um de nós toma partido de nossas próprias pressuposições filosóficas individuais. Significa dizer que um bispo, por exemplo, interrogará o mundo a partir da perspectiva das escrituras sagradas e o mundo lhe interrogará de volta a partir da palavra de Deus. Esse diálogo será muito diferente se feito por um cético, por um antropólogo, por um budista e assim por diante. “Thus our dialogue with the world is always based on certain philosophical presuppositions that define its medium and its rhetorical form”. (Groys, 2011, p.4).
Nosso diálogo com o mundo hoje se dá majoritariamente pela internet. Pensemos em um grupo de amigos, debatendo sobre política latino americana por exemplo. Se nenhum deles souber quem é o presidenta da Guiana, qualquer um poderá rapidamente descobrir através de seu smartphone que trata-se de Irfaan Ali. Mas a pesquisa na plataforma Google não se restringe a dados enciclopédicos, somos todos produtores de conteúdo também. Além de o primeiro resultado da busca ser o site da Wikipedia, no qual são os próprios usuários que produzem conteúdo, qualquer um daqueles amigos pode agora produzir informações em suas próprias constas de mídias sociais, blogs, e etc.
Independentemente de quem tenha produzido o conteúdo que iremos acessar, é importante fazer uma ressalva a respeito do próprio mecanismo de busca do Google: ele funciona por contexto. Independentemente de escrevermos “Quem é o presidente da Guiana?” ou “Quem não é o presidente da Guiana?” receberemos do mundo Google respostas muito semelhantes. Isso porque, apesar dos esforços de Pierry Lévy na criação da esfera semântica, o que o mecanismo de busca faz é separar cada palavra da sentença e nos apresentar todos os contextos em que essas palavras aparecem juntas. Nesse caso, nos apresentar os contextos em que “presidente” e “Guiana” aparecem juntos. Isso significa que a busca da verdade na era Google é uma busca pelo maior número de ocorrências possíveis, pelo maior número de contextos abstraindo-se de qualquer valor qualitativo desses – afirmativo, negativo, interrogativo, imperativo, etc.
Filosoficamente, o impacto se dá na maneira que interrogamos o mundo. Como consequência da falta de importância do valor qualitativo dos contextos, não existe mais a necessidade de se formular gramaticalmente a pergunta. No nosso exemplo, não é necessário construir a questão: “Quem é o presidente da Guiana?”, obteremos as mesmas respostas caso simplesmente coloquemos: “presidente” e “Guiana”. E essa é uma diferença significativa para a forma com a qual a filosofia anterior o Derridad se comportava. Quando Friderich Nietzsche disse: “Deus está morto”, não era cabível assumir que esse período geraria o mesmo tipo de resposta de “Deus não está morto”. Para além da partícula de negação ser irrelevante no mecanismo de busca, a palavra “Deus” e a palavra “morto” são tratadas pelo Google como tendo o mesmo peso sintático, aniquilando a velha hierarquia entre sujeito e predicado. Um resultado que poderia em muito agradar o velho Nietzsche:
Na realidade, nada teve até hoje uma força persuasiva mais ingênua do que o erro do ser, [...]. A “razão” na linguagem: oh, que velha mulherzinha misteriosa! Temo que não nos livraremos de Deus porque ainda acreditamos na gramática...
Da mesma forma que a bienal conquistou a equidade das imagens, o Google conquistou a equidade das palavras. Não acreditamos mais na gramática, na sintaxe, ou no universal da arte. Em processos paralelos com pontos de tangência, a humanidade criou essas duas máquinas metafisicas de respostas por contextos. Nas quais substantivos e adjetivos são iguais em valor, assim como objetos comuns e artísticos dentro de uma instalação, ou de uma bienal também. “As a philosophical machine, Google is based on a belief in extragrammatical freedom and the equality of all words and their right to migrate freely in any possible direction - from one local, particular word cloud to another”. (Groys, 2011, p.7).
Ainda da mesma forma que nas bienais e instalações, o Google comparta-se como uma esfera topográfica, marca a aparição em um determinado tempo e um determinado espaço – mesmo que esse espaço seja a virtual página de um blog – de algo. As palavras na Internet assim como os objetos na realidade sensível, circulam livremente, até que o mecanismo do Google ou da Bienal deem a essas contexto. No caso das obras de arte, Groys (2008) diz que a bienal é o mecanismo responsável por gerar originais, uma vez que marca a aparição uma daquele objeto no espaço tempo, ou seja, dá-lhe contexto. No caso do Google, a própria plataforma lhe informa o número de contextos possíveis para aquilo que estamos pesquisando, por exemplo, para “Nietzsche Crepúsculo dos Ídolos”: cerca de 134.000 resultados (0,65 segundos). Significa que por mais que a trajetória das palavras seja livre, o número total dessas trajetórias é finito e assim passível de ser calculado. De forma análoga, por mais que as imagens das obras de arte circulem livremente pela internet e mídia impressa, sua trajetória é finita e determinada pela sua aparição na exposição. “Thus the basic linguistic operations of affirmation and negation become operations of the inclusion or exclusion of certain words in certain contexts - which is precisely the definition of curatorship. The ‘word curator’ operates with texts as word clouds - he or she is interested not in what these texts ‘say’, but in what words occur in these texts and what words do not”. (Groys, 2011, p.12)
O ser humano opera como um curador contemporâneo em sua relação com as palavras. As palavras destituídas de seu valor uno em si apresentam se como as obras das bienais, como documentações delas próprias. O processo iniciado pela bienal, e intensificado pelo surgimento do Google faz com que nossa relação com o mundo se dê pela busca de contextos. O contexto não é a coisa em si, é a sua possibilidade de aparição. Essa aparição ou não aparição é determinada pela ocorrência documental de certa palavra ou de certa obra.
De maneira similar, quando Grau sugere que a partir de um espaço vazio e um título cria-se um foco de pensamento, está dizendo que o contexto daquelas palavras naquele espaço geram um número finito de possibilidades. O espectador tem na obra Io Sono, um papel metafísico muito semelhante ao papel do Google, buscar os contextos possíveis para aquele espaço a partir das palavras que lhe foram dadas.
O que significa para um trabalho discutir o mercado de arte?
Muitas são as aproximações entre a arte e a política ao longo da história da humanidade. E diversas também são as características que o objeto político e o objeto artístico assumiram no decorrer dessa narrativa. Mas essas duas classes de objetos possuem uma diferença ontológica gritante: no que toca a política novas características excluem as anteriores necessariamente, enquanto que na arte não. Quando o Estado surge, o feudo desaparece. Quando há o ganho de direitos civis, o súdito passa a ser cidadão. Mas na arte as coisas são diferentes: não é porque existe o vídeo que não se produz mais pintura. Não é porque já existe a tela que não se pinta mais sobre a parede. A arte é o lugar onde a perspectiva evolutiva de história falha e assim, é aquela que dá mais espaço para que as comparações sejam feitas. Inclusive, o museu, espaço por excelência da arte, é também o lugar por excelência da “geração” da realidade. Segundo Boris Groys (2008), a própria realidade sensível do mundo é secundária a do museu.
Como mencionado anteriormente, Groys (2008) acredita que a arte produzida dentro do sistema capitalista não é capaz de ter efetividade política e, o autor separa o “mundo livre” daquele com regimes autoritários. O que acontece é que em regimes totalitários como o nazismo e o comunismo houve uma aparelhagem própria para a produção e circulação das obras de arte. O mesmo não aconteceu nos regimes ditatoriais da América Latina por exemplo. No caso brasileiro, embora existisse um órgão de controle, esse era demasiadamente genérico e dava conta apenas do final da produção e não de seus meios. Assim, a arte brasileira em regime totalitário não operava no campo da ideologia, não era feita para educar as massas, tinha antes características de arte de guerrilha. A questão que parece persistir, ao menos na sociedade brasileira, é que como os mecanismos de controle não foram propriamente colocados durante o regime, a regulação da produção artística pareceu ficar sobretudo nas mãos da moralidade civil, e, os resquícios disso podem ser sentidos ainda hoje.
O Brasil viveu, se é que ainda não o vive, a ascensão dos movimentos conservadores de extrema direita durante os anos 2010. Como marco dessa escalada ao poder, essa força reacionária conseguiu o impeachment da presidente Dilma Roussef em 2016, seguida por uma campanha de fake news e encarceramento do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva – ambos integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), de centro-esquerda. O poder se consolidou para esse grupo em 2018, com a eleição do presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido). Sobre a premissa de livrar o país do comunismo (embora se trate apenas de uma teoria da conspiração) e reinstaurar os valores da família tradicional brasileira, Bolsonaro protagonizou uma campanha de destruição da arte e da cultura no Brasil, iniciada por grupos da sociedade civil, inclusive desmantelando o Ministério da Cultura.
Em 2018, após a posse de Bolsonaro, a obra A voz do ralo é a voz de Deus, produzida pelo coletivo És uma maluca foi censurada pelo novo governo eleito. A obra consistia no áudio de um discurso presidencial compondo uma instalação com um bueiro e 6 mil baratas de plástico. O uso do áudio, apesar desse ter percorrido livremente as redes sociais, foi impedindo de ser tocado, e em seu lugar, os artistas colocaram uma receita de bolo.
Mas, como mencionado anteriormente, parece haver no Brasil um resquício de censura a partir da moralidade. O MBL (Movimento Brasil Livre), em 2017, iniciou uma campanha contra o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Por ocasião da exposição bienal: Panorama da Arte Brasileira, o artista Wagner Schwartz apresentou a performance La Bête. Essa consistia no artista nu, manipulando uma cópia de uma das esculturas da série Bichos de Lygia Clark, enquanto o público podia manipular seu corpo. Apesar de não haverem leis restritivas no Brasil quanto a presença de nudez no espaço museológico, antevendo os problemas que poderiam ser gerados dada a ascensão dos movimentos conservadores, o MAM decidiu apresentar a performance em uma sala fechada e com indicativo de conteúdo impróprio para menores de 16 anos. Ainda pela lei brasileira, as faixas etárias são indicativas e não proibitivas, assim uma mãe decidiu levar sua filha de sete anos para ver a performance. A criança foi fotografada tocando o pé do artista. Essa imagem circulou grupos de Facebook e Whatsapp de conservadores brasileiros gerando uma grande comoção. Além de montar campanha à porta do museu agredindo verbalmente os visitantes, falo isso por experiência própria, o MBL abriu um processo contra Schwartz por pedofilia.
Enquanto a obra do coletivo És uma maluca claramente tinha intenções políticas, a de Schwartz não. Esse é um exemplo de como a arte contemporânea é um objeto-paradoxal nos termos instituídos por Groys (2008). Para o autor, a interpretação correta da arte hoje é a de que ela sempre é paradoxal, sempre simultaneamente afirmativa e crítica da sociedade em que está inserida. Isso porque, segundo Segal (2016): “Em resumo: desde a Primeira Guerra Mundial, a arte se transformou em um meio para ‘medir’ a identidade política.”
A identidade política da sociedade contemporânea, na maior parte dos países é a identidade capitalista neoliberal, e é essa identidade que fez com que o desfecho tanto para o coletivo És uma maluca quanto para Schwartz fosse o que fosse. Se compararmos com países de outra identidade política, como por exemplo com Cuba, perceberemos a diferença. Em 20 de maio de 2015, por ocasião da Bienal de Havana, a artista Tania Bruguera fez uma performance/instalação sonora que consistia na leitura, por 20 horas, do texto de Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Esse trabalho acabou fazendo com que a artista fosse detida. Bruguera foi detida porque o estado cubano tem sua identidade fundada em bases totalitárias, o que faz tanto com que a escolha de Bruguera seja esse texto específico de Arendt quanto que sofra consequências diferentes das sofridas pelos artistas brasileiros. Em Cuba a questão é legal e de estado, enquanto que no Brasil a questão é moral e civil.
Em ambos os três casos, as obras foram produzidas para exposições temporárias. Isso faz com que obedeçam à uma certa lógica de exposição que vigora, segundo
Belting (2001), desde 1960, a de criar objetos para expor e não mais obras primas. E as três são paradoxais em si mesmas uma vez que inseridas em sua cultura são afirmativas de si próprias e críticas daquilo que está ao redor. Mas além dessas exposições de caráter bienal, atualmente as feiras de arte tem ganhado cada vez mais espaço na sociedade contemporânea. A SP-Art por exemplo, começou tímida ocupando apenas um centro de conferências de um shopping center, e hoje já conta com edições que ocorreram no pavilhão de exposições da Bienal de São Paulo. A crescente atenção midiática aumentou o número de visitantes que não estão ali interessados em comprar arte mas em vê-la assim como o fariam em uma bienal. Novamente, essa prática é possível exatamente pela identidade política contemporânea neoliberalista.
O objeto artístico na feira de arte contemporânea não perde sua capacidade de ser paradoxal, mas ganha uma variante outra que não costuma ser abordada pela bienal, o preço. Claro que podem haver exceções. Em 2009, a artista Rosangela Rennó problematizou a questão do valor agregado à obra de arte e a da prática leiloeira com a obra Menos Valia [Leilão]. A artista recolheu em mercados de pulga câmeras fotográficas antigas, daguerreotipos, e outros materiais fotográficos. Ela os dispôs de forma a constituir 73 módulos. Esses módulos foram leiloados por uma leiloeiro oficial, Aloisio Cravo, no dia 9 de dezembro de 2010, como parte integrante da 29a Bienal de São Paulo. Os lotes possuem etiquetas fixas contendo: o valor do material comprado pela artista, o valor inicial do leilão, o valor pelo qual a peça foi arrematada e o lucro da artista. Aqui efetivamente se discute o valor em um trabalho exposto no contexto de uma bienal, mas é importante ressaltar que essa discussão acontece porque é agregada à bienal uma prática estranha a essa, uma prática típica do mercado de arte, o leilão.
As obras que já são apresentadas no contexto das feiras não precisam que lhes seja agregada uma segunda prática, porque o preço em si é tão relevante na etiqueta de identificação da obra quanto o nome do artista. Em 2018 por exemplo, a obra de Maurizio Cautellan, Comedian ganhou forte repercussão midiática após ser arrebatada na Art Basel (Miami Beach) por 150 mil dólares. Comedian é um relevo de parede composto por uma banana presa por uma fita isolante comum prateada. O preço de obras como Comedian assim como de Io sono de Grau estão comumente nos títulos das reportagens, e é o motivo principal de “revolta” nas redes sociais. A identidade política da sociedade contemporânea é neoliberal, o que significa que a identificação com o mercado, com o preço das mercadorias, chama a atenção do público comum.
Algo semelhante a revolta contra o preço atingido pelas obras de arte que “parecem não valer” o que arrecadam acontece com outros mercados de luxo como o da moda. Por exemplo, quando a marca Gucci lançou uma meia-calça rasgada por 190 euros, ou quando a Bottega Veneta lançou um bracelete de plástico por 850 euros. A questão que difere o que acontece com a moda e com a arte, é que a moda não tem a habilidade de ser um commodity auto crítico como a arte tem. A intenção da Gucci ou da Bottega Veneta não é de ser paradoxal em termos, mas sim de atender o mercado de luxo em que se inserem. Já quando a arte o faz, por ser sempre paradoxal em termos, está simultaneamente atendendo o mercado e o problematizando.
É essa formatação do objeto contemporâneo como paradoxal que permite que mesmo quando não fere nenhuma lei e não tenha nenhuma intenção de engajamento político, ele possa ser censurado. E é também essa formatação que faz com que mesmo que não seja uma crítica direta ao mercado, à partir do momento em que é precificado possa ser visto sobre a ótica da problematização do sistema mercadológico. De uma forma ou de outra, apesar das intenções de Grau passarem longe das que Piero Manzoni com Merda de Artista, Io sono mede a identidade política da sociedade em que está inserido e, inevitavelmente acaba por ser paradoxalmente uma crítica ao mercado que está acostumado a certas coisas, como uma meia-calça por exemplo, ter uma determinada precificação. Acaba por ser crítico também porque não se encaixa nas categorias de base das quais estamos acostumados a pagar por: não é em si uma mercadoria física e também não é um serviço.
No final, a imagem nos parece tão paradoxal quanto o próprio ser humano que dela faz uso: fluindo junto com a sequência de sociedades e culturas, ela se modifica o tempo todo, embora, em outro nível, permaneça imutável - observação esta que serve tanto para se fazer distinções como comparações.
(Belting, 2010, p.XXV)
Em conclusão, podemos perceber o interesse no trabalho de Salvatore Grau, Io sono pela série de questões que esse levanta. Em uma primeira análise, contém tanta ausência quanto qualquer outro trabalho de arte contemporânea, a diferença é que ao levar essa ausência para polos extremos, a própria ausência acaba por ser o tema central das discussões que orbitam ao redor do trabalho, muito embora essa não fosse a intenção do artista.
A ausência extrema vista na obra de Salvatore Grau é fruto de uma sociedade contemporânea cujo nível de desconstrução e virtualidade atingiu os níveis de ter o Google como uma máquina metafisica filosófica de verdade, destruindo o sistema hierárquico da gramática e acreditando que a somatória de contextos possíveis é a função primeira da experiência do conhecimento humano. Parafraseando o que Artur Danto (2003) diz à respeito de Duchamp: mesmo que alguém houvesse feito algo semelhante anteriormente à Grau, a sociedade em que estaria inserido não lhe dirigia nenhuma questão, tornando-se irrelevante. É a era Google e a medição da identidade política neoliberal que permitem a integração de Io Sono na narrativa da história da arte.
E, por fim, essa inclusão na história da arte acontece porque o campo entende o objeto contemporâneo como um objeto paradoxal que pode criticar algo e fazer parte ao mesmo tempo. Quando tratamos do mercado, é a arte a única que pode operar tal crítica porque as demais mercadorias em circulação não possuem tal habilidade. O trabalho paradoxal contemporâneo indexado pelo mercado corre sempre o risco de discuti-lo muito embora essa possa não ser a intenção do artista. E, no caso de Io Sono, apesar de não ser a intenção de Grau, que trabalho poderiam ser melhor para problematizar a “mão invisível” do mercado do que um trabalho que é em si mesmo invisível.
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